sexta-feira, 26 de maio de 2017

Sobre mães, marmitas, abraços e luto

Marmita da mãe que virou outro prato

Essa semana perdi a minha ex-sogra, a avó paterna do Lucca, mãe do Alê.
Aliás, essa semana foi a mais longa em termos de horas de dor e, ao mesmo tempo, a mais rápida deste ano. Somente hoje, sexta-feira, me dei conta que a última refeição decente foi na segunda a noite, quando o Lucca fez uma sopa de mandioquinha enquanto eu estava na reunião de condomínio. Subi e havia uma mesa posta e uma vida em ordem. Terça de manhã havia a bagunça da pia e uma notícia avassaladora: a Neide tinha enfartado e falecido. Assim mesmo, pá-pum, sendo que horas antes ela e o Lucca falaram ao telefone.
Daquele instante até ontem a noite eu não parei: fiz questão de ajudar em tudo o que podia, como forma de agradecer por tudo o que sempre fez por mim, mas principalmente pelo meu filho. A dor daqueles meninos - meu ex-cunhado, o pai do Lucca e o próprio - era tão grande que eu não podia apenas dar o pêsames.Se bem que quem me conhece sabe que sou assim mesmo: vou lá e faço. Seja pra quem for, seja o que for. Tem que vestir o morto? Ok, eu visto. Tem que maquiar? Ok, também faço. Esperar carro funerário, discutir pra achar os pertences? Tô lá!
E assim o fiz. Até o fim. Segurei a dor dos familiares, dos amigos, das companheiras de bingo, de terço, as clientes do Avon, das costuras...
Enquanto isso, a minha mãe segurava o Lucca. Foi a primeira perda dele. A primeira e a mais dolorida porque ele e a avó haviam reatado o contato em fevereiro deste ano. Por motivos que não cabem aqui, e alheios a nossa vontade, passamos dois anos longe dela.
Eu segurei no peito até a tristeza da minha mãe que era amiga dela. Ex-sogras que se curtiam... dá pra imaginar? Pois é, eram!
Ontem a noite, quando tudo caminhava para o continuar da vida, eu desabei. Senti meu corpo doer como se eu tivesse despencado de uma escada, senti o impacto de ter segurado tudo. Ontem a noite eu chorei de soluçar até dormir, já de madrugada.
Chorei porque se mães deviam ser eternas, avós deviam ser permanentes! Chorei não só porque perdi uma amiga, mas porque a dor do meu filho é tão intensa - e cá pra nós essa dor me dilacera até hoje desde a perda da Nora - e eu não posso fazer nada.
Lucca é um menino esperto, forte, maduro. Mas não existe maturidade quando se está de frente a uma perda destas. Essa ferida ele vai carregar até o dia que a outra avó, minha mãe, se for também. Aí se fecha um ciclo - que eu também já passei - e abre-se um abismo. É quando nossa história começa a virar apenas memória.
Hoje ainda não estava bem. Mas decidi cozinhar e transformar esse sentimento ruim em algo útil.
Foi daí que caiu a segunda ficha: no meio dessa tormenta toda, a minha mãe se preocupou em que eu comesse, e separou marmitinhas pra mim. Uma delas era bem chique, com aspargos e camarões, e que eu transformei num prato com uma massa italiana maravilhosa, cheia de energia boa da transmutação. Comida é afeto que a gente põe pra dentro, é conforto, é alimento pra alma também, afinal. E nisso minha mãe é imbatível!
A gente encerra ciclos e aprende coisas com esse finalizar todo. E das lições que ficam é que o abraço de quem nos ama é sempre a melhor almofada que podemos nos jogar. Eu abracei o pai do meu filho, zerando ali todas as pendências que tínhamos, eu abracei meu filho com todo o meu amor, e minha mãe me abraçou com toda a sua força.
Obrigada, mãe, por me manter de pé.
Obrigada, Neide, por todo o amor que você nos deu. Que você tenha muita luz em sua nova jornada, e que, aqui neste plano, eu possa perpetuar esse ciclo fraterno e solidário, de amor ao próximo.




terça-feira, 25 de abril de 2017

Como potinhos de Nutella

Potinhos de Nutella acabam. Bons vinhos, aquela cerveja incrível, o prato predileto, o chocolate favorito, férias, filmes, livros. Tudo acaba, tudo é findo. 
Relacionamentos também, sejam eles de qualquer espécie. E tal como no caso dos alimentos, muitas vezes azedam antes mesmo de acabar - basta colocar uma colher suja no pote pra correr o risco de perder aquele finzinho delicioso, e ter a (infeliz) surpresa do estrago. Potinhos de Nutella sempre acabam, mas a gente insiste em deixar aquele restinho pra mais mais tarde, pro conforto da alma num momento de necessidade, e não nos damos conta (será?) que isso também acaba. E assim vamos guardando vários potinhos quase vazios pela vida afora. 
A gente nasce sabendo que vai morrer. A gente cresce tendo a certeza das finitudes, dos prazos de validade e, ainda assim, insiste, dentro de um egoísmo absurdo, em prolongar o que não tem mais jeito. Rezamos para Deus manter conosco pessoas com doenças em estágios terminais. Rezamos para que o chefe nos mantenha naquele emprego insuportável, que suga nossa vida e nos joga no limbo mais profundo do poço da baixa autoestima profissional. Rezamos para que o outro não vá embora mesmo estando infeliz ao nosso lado e fazendo de nossos dias monótonas paisagens cinza. Rezamos e não aceitamos o fim, mesmo diante da certeza do fim. Como por fim aquilo que já nos deu tanto prazer? 
E, ao contrário do que se pensa, isso não é amor, é apego, é egoísmo puro e medo simples. 
Esse é o ponto de quebra da questão: meter o dedo lá no fundo do pote e tirar o melhor dali ou deixar estragar só pra dizer que ainda tem um resto? 
A gente sempre esquece que dá pra buscar outro, que dá pra ter coisa melhor ou maior. E daí, diante da ansiedade do fim e do medo, opta errado, e vive infeliz pro resto da vida com a escolha.
Há algum tempo, desde que me permiti viver minha metamorfose, venho aprendendo a lidar com os finais - alguns felizes, outros nem tanto, mas todos essenciais para que haja renovação de ciclos. Dizer não para jobs duvidosos, fechar portas para amizades unilaterais, me sabotar cada vez menos (até zerar essa conta), não ser o que os outros querem, mas viver minha minha essência em si, e ir cortando relacionamentos abusivos, (de novo) sejam eles de qualquer natureza, fazem parte desse aprendizado, 
Saber viver o prazer do fim é sinal de maturidade. É como beber até a última gota do vinho e ficar com as bochechas vermelhas e o riso frouxo. É alcançar com o dedo aquele restinho da Nutella lá no fim do pote e preencher a alma de conforto com tão pouco e seguir em frente,
É saber que, para todas as  coisas que acabam, outras começam. Basta a gente não deixar estragar.